Selda Pessoa
No escuro, as máquinas de costura parecem ter vida. Você anda entre elas como num cemitério, em que as almas passeiam quando ninguém vê. Dá para ouvir sua respiração, seus passos. Fica mais evidente o que está prestes a fazer.
Você sabe que isso tudo vai deixar de existir. Foram anos nessa oficina, quase todos da sua vida. Não na mesma casa, mas nesse lugar para onde ir, onde passar o dia e de onde voltar.
Decisão é uma jornada. Depois que a toma, a execução chega logo. Interessante é o tempo anterior, que você não percebe, mas já está decidindo, todo dia. O que você vive como decidir é a tentativa de entender, ou justificar. E a etapa final é a coragem de fazer o que sabe, há muito tempo, que precisa ser feito.
Não dá mais para voltar atrás. E se alguém te ver? E se for presa? Você está fazendo o justo.
Seja rápida. Você nunca sonhou, sonha agora. Imagina o futuro, pra não perder a coragem.
Tudo feito, e, saindo da oficina, você a vê. Os olhos claros, sonolentos, te encaram. A postura, de quem sempre soube onde queria chegar, se coloca à sua frente. Mas, com a caixa e a tesoura na mão, você sabe que irá até o fim.
Pela primeira vez se sente capaz, disposta a tudo. O olhar de Dona Julia continua firme, sem medo. Também sem raiva. E sem a indiferença com a qual você já se acostumou.
- Vi você pelas câmeras, Augusta – diz Dona Julia - Pode levar a máquina. Você e sua mãe foram meu começo, o alicerce onde construí meu sonho. Se vai, leve o que precisar.
Surpresa com as palavras, com o olhar e as lágrimas, você chora também. E se despede, aliviada.